Motor de Dois Tempos    (Cesare Bossaglia)

O menor peso e o menor custo de fabricação do motor de dois tempos não bastaram para garantir-lhe o sucesso no uso automobilistico. No entanto, ele é praticamente insuperável em outros campos, sobretudo o motociclistico.

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Define-se como de dois tempos o motor alternativo de combustão interna cujo ciclo de trabalho se efetua em dois cursos do pistão, isto é, num único giro do virabrequim.

O motor de quatro tempos exige quatro cursos do pistão para cumprir o ciclo; a cada curso corresponde uma das fases: admissão, compressão, expansão e escape. A diferença entre os dois tipos de motor, porém, é puramente convencional: enquanto no de quatro tempos as fases do ciclo são efetuadas no cilindro, no de dois tempos recorre-se a um sistema de bombeamento separado.

Contrariando um opinião muito difundida, não se considera característica essencial do motor de dois tempos a ausencia de válvulas para o controle da admissão e do escape dos gases do cilindro. Na realidade, nas três primeiras décadas do século XX existiram muitos motores de dois tempos com válvulas automáticas ou comandadas; elas geralmente serviam para admissão de uma nova carga da mistura no cilindro, principalmente nos grandes motores diesel para navegação.

As dificuldades para se obter um correto cumprimento de cada fase do ciclo de trabalho no motor de dois tempos derivam da simultaneidade com que se efetua o escape dos gases queimados e a admissão de gases novos no cilindro, alem da limitada duração dessas fases. A essas dificuldades soma-se a falta de um curso do êmbolo destinado o escape dos gases queimados; portanto, os próprios gases novos, que entram no cilindro com uma adequada sobrepressão, devem efetuar uma ação de lavagem, extremamente influenciada pelo regime de pressão que se manifesta na tubulação de escape (durante a lavagem, esta se encontra em comunicação com o cilindro).

EVOLUÇÃO
No passado, adotaram-se vários sistemas com o objetivo de criar uma separação maior entre os dois fluidos nessa fase, o que melhoraria a eficiencia e evitaria os perigos da mistura entre ambos. No entanto, a complexidade dos esquemas previstos anulava as vantagens fundamentais do motor de dois tempos - a simplicidade construtiva e a conseqüente economia de execução - sem resolver totalmente o problema. Em sua concepção atual, o motor de dois tempos raramente utiliza válvulas para o controle de admissão e de escape dos gases do cilindro; disso se encarrega o próprio pistão, que, em seu curso descendente, descobre duas ou mais janelas - aberturas feitas no cilindro -, pelas quais se processa a passagem dos gases. A admissão e a pré-compressão da nova mistura para a lavagem ocorrem na parte baixa do motor (hermética), onde a face inferior do pistão em movimento cria a necessária variação de volume. Nos grandes motores, sobretudo nos pluricilindricos e nos de ciclo Diesel, utiliza-se para a lavagem uma bomba injetora de ar - chamada de "bomba de lavagem" - externa ao motor.

DA TEORIA À PRÁTICA
Depois da formulação teorica do ciclo, atribuida ao ingles Clerk em 1879, Karl Benz construiu, entre 1878 e 1880, um motor a gás com fase de compressão no carter. Provavelmente, foi esse o primeiro motor de dois tempos; mas seu funcionamento incerto fez com que fossem abandonados os estudos. O baixo regime de rotação que caracterizava os motores de quatro tempos até o ano de 1900 evidenciava as vantagens do emprego de propulsores de dois tempos. Mas o desenvolvimento destes tardou alguns anos, até que as tentativas de melhorar sua eficiencia deram bons resultados praticos: motores de pequena cilindrada usados no setor motociclistico. Os primeiros ciclomotores dotados de motor de dois tempos encontraram aplicação somente na década de 20, na produção da industria francesa Cozette.
    Motor de dois tempos Tony Huber da Peugeot, de 1906, com válvula de admissão automática.

Um diafragma corrediço colocado em torno da biela separava do bloco a camara de admissão.

O CICLO

O ciclo completo de um motor de dois tempos processa-se da seguinte forma:

1º tempo - No curso de subida para o ponto morto superior (PMS), o pistão fecha inicialmente as janelas de admissão - o que encerra a fase de lavagem então em desenvolvimento - e depois as de escape. Nesse momento inicia-se a compressão da mistura que entrou na câmara. Essa compressão termina com a combustão, nas proximidades do PMS. No último trecho do curso ascendente, a borda inferior do pistão descobre uma janela, atraves da qual entra nova porção de mistura, aspirada pela parte baixa do motor, devido à depressão criada pela subida do pistão.

2º tempo - O pistão desce do PMS sob a ação dos gases queimados em expansão e, antes de atingir o ponto morto inferior (PMI), descobre a janela de escape, pela qual começam a sair os gases, devido à sua pressão. Ao descer, o pistão efetua também a pré-compressão da nova mistura já aspirada pela parte baixa do motor. Quando uma ulterior fração do curso descendente descobre as janelas de admissão, em comunicação com a parte baixa do motor, a nova mistura penetra no cilindro, expelindo os resíduos da combustão precedente. Completa-se assim o ciclo, que se repete a cada volta completa do virabrequim.

 

PRIMEIRO TEMPO

     
A janela de escape está aberta, enquanto as janelas de admissão e de lavagem estão fechadas. O pistão forma depressão no carter.   O pistão inicia a compressão da mistura. A janela de admissão está parcialmente aberta. A mistura penetra então no carter.    Termina a compressão e começa a combustão desencadeada pela faísca da vela. Continua a admissão da mistura no cilindro 

 

SEGUNDO TEMPO

A expansão empurra o pistão para baixo. Abre-se parcialmente a janela de escape, enquanto se fecha a janela de admissão.   Abre-se a janela de lavagem e a mistura nova, pela ação do pistão, enche o cilindro e provoca a expulsão dos gases queimados.   Subindo, o pistão fecha a janela de lavagem, enquanto continua a saída dos gases queimados. Em seguida, o ciclo se reinicia.

O motor de dois tempos tem algumas vantagens em relação ao de quatro tempos: menos peso, menor dimensão, simplicidade e menor custo de fabricação. Fica em desvantagem quanto ao consumo de combustível e lubrificante, pela dificuldade de ser regulado na potência, pela irregularidade de funcionamento nos baixos regimes e pela má refrigeração no caso de altas potências específicas.

Entre as sucessivas fases ativas de trabalho, o intervalo de um único giro do virabrequim determina elevada uniformidade do torque motriz, caracteristica que permite reduzir pela metade o fracionamento da cilindrada em relação ao motor de quatro tempos, com igual flutuação de torque.

Teoricamente - e apenas teoricamente, pois os rendimentos são muito diversos -, com a mesma cilindrada e o mesmo numero de giros, um motor de dois tempos deveria fornecer o dobro da potencia de um motor de quatro tempos. Mas isso só se aproxima da verdade nos grandes motores marítimos com bombas de lavagem externas e com vávulas de admissão. Nos motores motociclisticos e automobilisticos, o mesmo não ocorre: na fase de lavagem perde-se parte da mistura que iria participar da combustão. Para a produção de série, os dois ciclos equivalem-se quanto à potencia especifica; há apenas uma pequena vantagem para o de dois tempos, se ambos tiverem a mesma cilindrada e o mesmo numero de giros.

Nos motores de competição com cilindradas unitárias muito pequenas (50 cc), o motor de dois tempos atinge potencias especificas de 300 cv/litro, em virtude do elevadíssimo numero de giros (acima de 18.000 rpm). No entanto, torna-se duvidoso seu bom funcionamento se for aumentada a cilindrada unitária.

O trabalho despendido para a admissão e a pré-compressão da mistura na parte baixa do motor é maior do que o trabalho despendido por um motor de quatro tempos, durante a mesma fase, devido à contrapressão sobre o pistão na fase de escape e ao acionamento do sistema de comando de válvulas. Em geral, o volume efetivo de mistura introduzido e relacionado à cilindrada é relativamente baixo devido ao escasso rendimento volumetrico da bomba de lavagem, que, se for introduzida no embasamento do motor, representa um volume muito grande. Alem disso, uma parte da mistura introduzida no cilindro sai inevitavelmente atraves da janela de escape, durante a fase de lavagem, produzindo empobrecimento da nova carga introduzida. Finalmente, não se pode aproveitar completamente a fase de expansão, pela presença das janelas na parte baixa do cilindro. A altura das janelas determina a duração das fases de lavagem e de escape, função do regime de rotações previsto para o motor.

Entre as aplicações mais interessantes encontram-se as unidades motrizes de ciclo diesel, realizadas, sobretudo no passado, segundo o esquema de dois tempos. Nessas unidades, a injeção do combustível e a lavagem superabundante, efetuadas por bombas injetoras separadas, anulavam as deficiencias de enchimento dos cilindros e também os consumos elevados.

Os motores pequenos de dois tempos são muito utilizados em unidades portáteis para agricultura, em barcos e motocicletas.

NO AUTOMÓVEL

O motor de dois tempos sempre encontrou sérias dificuldades no campo automobilistico. De fato, as vantagens economicas e tecnicas advindas do menor custo e do menor peso do propoulsor não podem ser consideradas no automovel como requisitos essenciais: o peso do motor representa apenas uma pequena parte no peso total do veiculo, da mesma forma que o custo do motor é pequena parcela do custo total do automovel. Na aplicação automobilistica, os dois-tempos apresentam as virtudes da boa uniformidade do torque motriz e da elevada elasticidade, traduzidas em menor necessidade do uso do cambio. Em contrapartida, aumentam os fatores negativos, pois aos defeitos já enunciados acrescentam-se falhas como irregularidade de funcionamento em marcha lenta, emissão de muita fumaça pelo escape, ausencia quase total da ação frenante do motor quando se alivia o pé do acelerador. Este ultimo inconveniente pode traduzir-se em situações perigosas, alem de representar onerosa sobrecarga para os freios.

 

A constante tendencia de aumento da potencia especifica nos propoulsores automobilisticos demonstra-se desfavoravel ao motor de dois tempos, no tocante ao consumo; explorado acima de certos limites, ele apresenta elevado consumo de combustivel. De qualquer forma, as curvas dos consumos demonstram que as condições ideais se mantem numa faixa muito reduzida de todo o campo de utilização do motor.

Fora dessa faixa, a lavagem incompleta e as perdas de mistura não queimada atraves do escape oferecem condições desvantajosas de funcionamento. Essa situação contrasta com a versatilidade de utilização necessária a um motor automobilistico.

Tambem em termos de poluição atmosferica, o motor de dois tempos apresenta inconvenientes. As emissões de monoxido de carbono e de hidrocarbonetos não queimados - os óxidos de nitrogenio não se formam, devido à temperatura mais baixa do ciclo - são praticamente incontroláveis nos motores em que a lavagem é efetuada pela mistura que entra no cilindro. Apresentam menos emissões poluentes os motores dotados de injeção de combustível diretamente no cilindro, depois do fechamento das janelas de escape.

A lubrificação, por oleo misturado ao combustível, ou do tipo de "perda total", influencia altamente, no motor de dois tempos, a emissão de hidrocarbonetos não queimados. O problema poderia ser resolvido recorrendo-se a uma lubrificação com recuperação - do mesmo tipo da usada nos motores de quatro tempos -, renunciando-se , porem, à utilização do embasamento como bomba de lavagem.

Por esses motivos, mesmo utilizando complexas regulagens, não se obtem dos motores de dois tempos emissões poluentes quantitativamente aceitaveis. Mas os severos limites estabelecidos pela legislação americana a partir de 1975, e pela legislação europeia para a década de 80, permitem prever que os motores de dois tempos poderão encontrar no futuro um panorama mais favorável.

Isso porque os próprios motores atuais de quatro tempos, incapazes de satisfazer as normas, terão que ser equipados com aparelhamentos auxiliares para a diminuição dos poluentes; e, nesse caso, os de dois tempos, de concepção menos ortodoxa, serão menos onerosos, pois poderão utilizar dispositivos externos antipoluição.

É possível, portanto, que um motor de dois tempos dotado de injeção de combustível, de bomba de lavagem separada e de lubrificação com recuperação satisfaça os requisitos exigidos com o auxílio de um único catalisador no escapamento para oxidação dos hidrocarbonetos e do monoxido de carbono. Alem disso, esse motor pode ter, inclusive, rendimento global mais alto.
  Corte esquemático do motor de dois tempos de seis cilindros e doze pistões da Fiat de corrida de 1925-27.

Esse motor de 1500 cc possuia dois virabrequins: um no carter e um no cabeçote.

A combustão ocorria entre as cabeças dos dois pistões contrapostos.

Motor do DKW 3=6 de 1949, de três cilindros de 896cc                         Motor da Isetta de 1953

Os motivos que determinam a escolha entre um propulsor de dois tempos e um de quatro tempos nem sempre são válidos para os motores de competição. Mais do que a potencia máxima, depoem a favor do primeiro a aceleração, a elasticidade e as possibilidades de grandes saídas de giro. Essas caracteristicas levaram o motor de dois tempos ao exito definitivo nas corridas de motocicletas fora-de-estrada, de motocross e de karts, onde a ausencia de cambio imposta pelos regulamentos excluiu, praticamente, a utilização do sistema de quatro tempos. Recentemente, as competições de velocidade tem registrado o predominio absoluto das pequenas e médias cilindradas nas motocicletas, mesmo sendo determinante, nesse caso, a potencia máxima desenvolvida pelo motor. Ao contrário, nos carros de competição, o uso do motor de dois tempos, já raro no passado, desapareceu por completo.

As elevadíssimas potencias específicas, atualmente exigidas para as provas de velocidade, são obtidas unicamente a partir da previsão de velocidades rotacionais muito altas, isto é, realizando o maior numero possível de fases ativas na unidade de tempo.

Pela breve duração das fases de escape e de lavagem nos ciclos de dois tempos, é possível aumentar o numero de giros em motores de pequena cilindrada unitária, da ordem de 100 cc.

O desdobramento da cilindrada interessa em unidades motrizes de apenas 125 cc; para um motor motociclistico de 500 cc, seriam necessários, portanto, quatro cilindros.

Logo, para motores automobilisticos, deve-se considerar um numero de cilindros da ordem de 12 ou mais, mesmo sem visar aos 300 cv/litro, particularidade dos motores motociclisticos de pequena cilindrada.

    Componentes do DRB de 1967, motor de sofisticada concepção, ao contrário da maioria dos motores de dois tempos.

O DRB era um seis cilindros  boxer de 1000 cc, com três válvulas rotativas e três carburadores, que não saiu do estágio de protótipo.
 

A incrivel complexidade que derivaria de uma concepção desse tipo teria forte incidencia negativa no rendimento mecanico do propulsor e acabariam se perdendo as vantagens do motor de dois tempos.

Devido ao elevado consumo, o motor de dois tempos exige a utilização de grandes tanques para o combustivel. Alem da colocação incomoda nos modernos carros de competição, tais tanques anulam completamente a vantagem do menor peso do motor.

ARQUITETURA

Em sua configuração mais generalizada, o motor de dois tempos distingue-se arquitetonicamente do de quatro tempos pela ausencia de válvulas no cabeçote, dos relativos órgãos de comando e de um sistema de lubrificação; e, ainda, pela posição dos coletores de admissão e de escape, diretamente ligados ao cilindro. Apenas no caso de admissão controlada por meio de válvula rotativa, o coletor de admissão liga-se diretamente ao embasamento, que funciona como bomba de lavagem.

O pistão de um motor de dois tempos, alem de controlar a abertura e o fechamento das janelas, possui as seguintes caracteristicas: excepcional comprimento, presença de janelas na saia para melhorar o defluxo da mistura nos canais de lavagem; forma da cabeça às vezes correlata com o sistema de lavagem escolhido. Outra caracteristica própria do motor de dois tempos são os rolamentos nos mancais de biela e do virabrequim, impostos pela lubrificação sem pressão, inaceitável com o uso de bronzinas lisas.

Nas configurações pluricilindricas, as configurações mais usadas são: dois, quatro e seis cilindros em linha ou contrapostos; quatro cilindros em V; quatro cilindros em quadrilátero. Raramente usa-se a solução de oito cilindros em V de 90º. Empregam-se também motores de quatro a doze cilindros cabeça contra cabeça, isto é, com camaras de combustão comuns, dois a dois, que acionam dois virabrequins distintos, e, às vezes, apenas um único virabrequim.

Cinco tipos de motores de dois tempos com cilindros em U, que tem câmaras de combustão comuns para cada par de pistões. O cilindro em U permite a lavagem unidirecional, mas tem a desvantagem da pouca racionalidade da câmara de combustão.

Geralmente, os motores de dois tempos com cilindros em linha apresentam elevada dimensão axial pela presença dos canais de lavagem entre os cilindros ou pela necessidade de interpor entre as manivelas do virabrequim, além dos rolamentos dos mancais, órgãos de vedação que isolam cada cavidade do embasamento do motor. O intervalo entre as fases sucessivas de trabalho é dado pelo quociente entre o ângulo de giro e o numero de cilindros; a uniformidade do torque motriz será, portanto, tanto mais elevada quanto maior for o numero de cilindros.

Mais equilibrados que os de cilindros em linha quanto às forças alternadas, os motores de cilindros contrapostos apresentam uma contemporaneidade de fase para cada par de cilindros opostos; suas manivelas engrenam entre si formando um angulo de 180º e giram numa camara do bloco, que funciona como bomba de lavagem para todos os cilindros. Estabelece-se, com o mesmo principio aplicado aos motores em linha, o angulo de defasagem entre os pares sucessivos de cilindros. Essa configuração talvez seja a mais interessante para um motor pluricilindrico de dois tempos, tanto para o bom rendimento das bombas de lavagem - que operam com os mais reduzidos espaços nocivos - como pelas menores perdas mecanicas devidas ao limitado numero de mancais e, sobretudo, de dispositivos de vedação de pressão no virabrequim. A simultaneidade das fases de trabalho nos dois cilindros não tem, em geral, grande influencia negativa sobre a uniformidade do torque motriz, sempre elevada num motor de dois tempos. A solução, todavia, não é muito usada por motivos de custo e de espaço.

Ainda menos difundidos que os precedentes são os motores de dois tempos com cilindros em V de 90º, solução hoje empregada na versão de quatro cilindros sobretudo em alguns motores de popa de grande cilindrada, em virtude de suas limitadas dimensões.

Os motores com cilindros em quadrilátero são resultado do acoplamento de duas unidades bicilindricas, por meio de um par de engrenagens que liga os dois virabrequins. A solução, que apresenta vantagens porque permite uma forma bastante compacta do propulsor, foi utilizada em alguns motores motociclisticos de competição tambem pela facilidade com que possibilita adotar quatro válvulas de disco na extremidade dos eixos - uma para cada cilindro, para controle da alimentação.

A firma alemã Junkers adotou em seus primeiros motores de dois tempos - instalações navais fixas e, em seguida, motores diesel para uso automobilistico - uma particular disposição, representada pelo conjunto de duas unidades de cilindros em linha, unidas entre si, de modo que uma sirva de cabeçote para a outra. Os virabrequins ligam-se adequadamente, movendo os êmbolos num movimento sicronizado mas oposto. O esquema original Junkers, válido porem somente para unidades motrizes muito lentas, não previa o uso de dois virabrequins: os pistões superiores ligavam-se a um único virabrequim inferior por meio de duas longas bielas situadas no exterior de cada cilindro.

Mesmo em prejuizo da simplicidade da execução, o sistema de êmbolos contrapostos num único cilindro - um controla as janelas de escape e o outro as de admissão - permite obter uma lavagem de elevado rendimento. Esta se efetua com uma corrente de andamento unidirecional, sem recorrer a válvulas comandadas ou a complicados artifícios. Daí deriva a possibilidade de se conseguirem elevadas potencias especificas e consumo excepcionalmente reduzido para um motor que funciona segundo o ciclo de dois tempos. Entusiasmados com essas prerrogativas, alguns construtores do passado procuraram utilizar o motor de cilindros de cabeças contrapostas em competições esportivas.

Assim como no motor de quatro tempos, o desempenho do de dois tempos depende fundamentalmente da quantidade de mistura introduzida no cilindro para ciclo e em cada regime de rotação. No caso de um motor dotado de bomba de lavagem no bloco, tal quantidade não pode ser igual ao valor efetivo da cilindrada em todo o campo de utilização, tanto pelo baixo rendimento volumétrico da bomba como pelas inevitáveis perdas da mistura pelas janelas de escape, antes de ser queimada. Essas perdas influenciam negativamente o rendimento da lavagem e, portanto, o grau da carga de mistura introduzida no cilindro. Observa-se porem que, enquanto no motor de quatro tempos o enchimento do cilindro é quase completamente efetuado pelos gases novos que entram - o enchimento é condicionado pela abertura da borboleta do carburador, em benefício da fácil regulagem da potencia -, no motor de dois tempos o preenchimento não se modifica substancialmente com as aberturas parciais da borboleta, devido à quantidade variável de gases residuais da combustão anterior que permanecem no cilindro. Com a varição das condições de carga, não se manifestam, portanto, importantes alterações nos valores de compressão; ao contrário, modifica-se o grau de diluição da mistura que, em certas condições (como o funcionamento em marcha lenta), pode atingir limites que impeçam a combustão normal da mistura. O motor funciona, então, irregularmente, necessitando de duas ou mais fases sucessivas de lavagem para que os gases que estão presentes no cilindro assumam as caracteristicas imprescindíveis de combustividade.

Na maioria de motores de dois tempos usa-se a admissão no bloco - mediante uma abertura feita no cilindro e controlada pelo movimento do pistão - por sua simplicidade, embora essa solução não atinja altos rendimentos volumétricos da bomba no embasamento, em todo o seu campo de utilização.

Se o diagrama de abertura assumir um andamento simétrico em relação ao PMS, o dimensionamento da janela - que vise a obter elevado avanço de abertura em benefício do enchimento - comporta correspondente atraso de fechamento, que, além de certos limites, revela-se danoso. O fechamento deve-se verificar no instante em que a mistura contida no conduto de admissão pára por efeito da pressão crescente no bloco, que se contrapõe à inércia de movimento da coluna gasosa.

A partir desse instante, um posterior atraso de fechamento comportaria um refluxo da mistura aspirada, o que seria totalmente prejudicial. A condição de equilibrio varia, porem, em relação ao regime de funcionamento do motor; por isso, o dimensionamento da janela deve prever os regimes de maior utilização do motor e as caracteristicas de desempenho previstas.

Dada a simetria do diagrama, fixam-se o instante de abertura e, portanto, a duração de toda a fase de admissão, depois de definido o ângulo de fechamento. Dessa relação derivam a limitação do tempo disponível para a realização da fase, as elevadas depressões no embasamento e a velocidade da mistura nos condutos. Isso provoca sensíveis perdas de carga nos próprios condutos de admissão.

Tais motivos levaram os construtores a estudar a aplicação, nos motores de dois tempos, de válvulas automáticas ou comandadas por um controle na fase de admissão, que não sofram as limitações do sistema. De fato, as válvulas automáticas apresentam a vantagem de adequar a duração da admissão ao regime de rotação do motor, do qual depende a variação das condições que disciplinam o movimento do fluido; na prática, porém, podem aparecer falhas, pois a inércia das partes móveis não permite, às vezes, uma abertura adequada. As válvulas convencionais, presentes em alguns velhos motores, foram substituídas por válvulas de laminas de aço ou de plástico, com massa muito reduzida.
    Esquema do ciclo teórico de funcionamento de um motor de dois tempos.

O ciclo completa-se em apenas dois cursos do pistão, isto é, numa volta completa do virabrequim.

Durante o curso de subida verificam-se as seguintes fases: término da lavagem, compressão e admissão da mistura no carter.

Durante o curso descendente ocorrem: combustão e expansão, compressão da mistura no carter, escape espontaneo dos gases queimados e admissão da nova mistura na camara de combustão, pelas janelas de lavagem.

Por outro lado, as válvulas automáticas prejudicam a admissão pelas sensíveis perdas de carga que se manifestam nos condutos. Para corrigir essa falha, em alguns motores criados recentemente para uso esportivo adotaram-se sistemas mistos, nos quais, ao lado da admissão convencional controlada pelo pistão, aparece um sistema automático de lâminas, do qual parte a carga de combustível, antes que o êmbolo descubra a janela no cilindro.

A partir da década de 50, a preferencia dos construtores voltou-se para um segundo sistema, de maior simplicidade construtiva e que oferece ainda segurança de funcionamento, facilidade de lubrificação e altos rendimentos volumetricos, devido aos condutos de admissão retilineos e de grande diametro. Tal sistema utiliza válvulas rotativas, com as quais se podem obter diagramas assimetricos de admissão, pois estão desvinculadas do movimento alternado do pistão. Esses dispositivos já eram conhecidos antes da década de 20, como atestam mumerosos projetos, patentes e realizações da época. As várias soluções reagrupam-se em dois sistemas básicos distintos: as gavetas cilindricas e os discos girantes. O primeiro foi mais usado no passado, enquanto o segundo ainda se conserva atual.

     Os desenhos ilustram as possíveis soluções para o controle de admissão da mistura por meio de uma válvula.

Salvo algumas exceções, o uso de válvulas rotativas não teve muita aplicação fora das competições. O motor de dois tempos para automóvel continuou usando para a admissão a "terceira janela", controlada pelo pistão; nos de popa, generalizou-se o uso das válvulas de lâminas, de colocação mais simples.

A LAVAGEM

Em relação à disposição das janelas de admissão no cilindro e ao andamento das correntes de lavagem, relacionam-se quatro tipos fundamentais de lavagem:

Lavagem por corrente transversal - Utilizada durante muito tempo em quase todas as construções desse tipo, caracteriza-se pela posição das janelas de admissão frente às de escape. Um defletor na cabeça do pistão obriga a carga que entra a se desviar para a parte alta do cilindro. Vários fatores determinaram o abandono do sistema; atualmente prefere-se a lavagem tangencial.

Lavagem tangencial - Proposta pelo alemão Snürle na década de 30. O canal de lavagem desdobra-se; as duas correntes possuem um andamento tangencial que faz com que se encontrem ao longo da parede do cilindro oposta ao escape, para depois subirem novamente reunidas em direção ao cabeçote. As vantagens residem na abolição do defletor sobre o pistão, na forma mais funcional para a câmara de combustão e no melhor controle do fluxo de lavagem. Em seu percurso, o fluxo mantem-se aderente às paredes do cilindro, reduzindo os perigos de mistura com os gases queimados. Aperfeiçoado com o tempo, esse sistema impõe-se sobre os outros porque não altera as caracteristicas de simplicidade, fundamentais para os motores de dois tempos.

Lavagem em contracorrente - pouco difundida e usada quase exclusivamente pela fábrica alemã MAN em grandes unidades motrizes diesel. O sistema caracteriza-se pela sobreposição das janelas de escape sobre as de admissão, situadas ambas na mesma parte do cilindro. A corrente de lavagem passa pela cabeça do pistão e depois pela parede oposta do cilindro, ao longo da qual sobe novamente em direção ao cabeçote.

Lavagem unidirecional - Teoricamente, é o esquema mais correto para a obtenção de elevado rendimento. Por esse motivo, foi objeto de inumeras patentes, nem sempre de fácil realização; baseia-se no princípio de evitar inversões de fluxo no cilindro. A lavagem unidirecional é muito usada em unidades motrizes diesel de grande potencia, com válvulas comandadas na cabeça, para o controle da entrada do ar proveniente da bomba. A solução, que atingiu seu auge na década de 30, foi empregada pela DKW e em motores de competição. No entanto pouco exemplos restaram de realizações práticas em motores automobilisticos, seja pela complexidade e pelo peso, seja pelos sérios problemas de refrigeração que o sistema apresenta. A lavagem unidirecional foi abandonada com o aperfeiçoamento da lavagem tangencial, mais economica e adequada aos regimes rotacionais dos motores modernos. 

No quadro, os principais tipos de lavagem, que variam conforme a posição das janelas. Nos motores de dois tempos, a lavagem é a fase durante a qual ocorre a admissão da nova mistura na câmara, provocando a simultanea expulsão dos gases queimados. A posição recíproca das janelas de lavagem e de escape é importante para o rendimento da lavagem.

 

SOBRE O AUTOR, CESARE BOSSAGLIA

O texto acima é de autoria de Cesare Bossaglia, engenheiro italiano projetista de motores 2T de alto desempenho. Em meados dos anos 50  do seculo passado, Bossaglia trabalhou na fábrica de motocilcletas Parilla onde desenvolveu um motor de dois tempos inspirado no motor da MZ, pioneiro na utilização de válvula rotativa para controle da admissão. Também projetou motores de dois tempos automobilísticos, como o DRB, que não saiu do estágio de protótipo.

Escreveu o livro “Il motore a due tempi di alte prestazioni”, publicado em 1968 na Itália. O livro é repleto de fotos e desenhos e abrange não apenas motores 2T de motocicletas, mas também motores de automóveis. Traduzido para a língua inglesa, foi publicado em 1972 sob o título “Two-Stroke High Performance Engine – Design & Tunning” com fotografias do motor DRB boxer de 6 cilindros na capa.

 
DRB (1966 - 1966)

Marca formada pelas iniciais do conde Nicolò Donna delle Rose e do técnico Cesare Bossaglia para um carro que não chegou a ser terminado.

Em 1966 eles decidiram projetar e construir um pequeno modelo grã-turismo, com motor de dois tempos de 1000 cc, para apresentar no Salão de Turim do ano seguinte.

O motor passou por testes práticos, depois de montado experimentalmente num Simca 1000. Era um seis cilindros boxer (cilindros contrapostos), projetado pelo próprio Cesare Bossaglia. Funcionava segundo o ciclo de dois tempos (numa volta ocorriam seis explosões, simultaneas duas a duas) e tinha 996,29 cc (62 x 55 mm) de cilindrada total.

Três válvulas rotativas  no carter, solidaria com o virabrequim, faziam a distribuição da mistura ar-combustivel aos cilindros. Alimentado por um carburador Solex triplo corpo, o motor desenvolvia 75 cv a 6800 rpm, com a possibilidade de girar sem inconvenientes até o limite de 8000 rpm.  

Na versão "brava" chegava a 115 cv a 9000 rpm. A refrigeração era a água e a lubrificação das articulações das bielas e dos cilindros fazia-se por meio de oleo misturado à gasolina na proporção de 3%. Tambem foi feita outra versão do motor que produzia 115 cv a 9000 rpm.

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